sábado, 19 de janeiro de 2008

O Colar da Pomba: II - Sobre Apaixonar-se Durante o Sono

Desculpem o hiato de quase um mês. Vocês sabem como é. Férias, preguiça, etc.

Mas continuemos com a tradução d'O Colar da Pomba:

II - SOBRE APAIXONAR-SE DURANTE O SONO

CADA caso de amor precisa necessariamente de uma causa que lhe origine. Começarei com a mais improvável das causas do amor, de forma que o discurso possa prosseguir na ordem devida, iniciando como sempre através do exemplo mais simples e fácil. O amor é de fato causado por coisas tão estranhas, que eu não as mencionaria se não as tivesse observado eu mesmo.

Aqui está uma situação da minha própria experiência. Um dia visitei nosso amigo Abu’l-Sari ‘Ammar Ibn Zyiad, o liberto de al-Mu’aiyad e encontrei-o afundado em pensamentos e muito preocupado. Lhe perguntei o que havia de errado; por algum tempo ele recusou-se a explicar, mas então disse “Uma coisa extraordinária me aconteceu, de um tipo desconhecido para mim.” “O que foi?” perguntei. “Noite passada”, ele respondeu, “vi em sonho uma linda dama, e ao acordar descobri ter perdido completamente meu coração para ela, que estava loucamente apaixonado por ela. Agora estou na mais difícil das situações com essa paixão que nutri por ela.” Ele continuou amuado e aflito por mais de um mês; nada lhe alegrava, tão profunda era sua emoção. Por fim repreendi-o, dizendo “É um erro imenso ocupar sua alma com algo irreal, e apegar sua fantasia a um ser inexistente. Você sabe quem é ela?” “Não, em nome de Alá!” ele respondeu. “De fato”, prossegui, “tens muito pouco juízo, e teu julgamento deve estar comprometido se estás de fato apaixonado por uma pessoa que nunca viste, ainda mais por alguém que nunca foi criado e simplesmente não existe no mundo. Se tivesses apaixonado-se por uma dessas figuras pintadas nas paredes dos banhos públicos eu acharia mais fácil desculpar-te.” Assim continuei, até que enfim através de um grande esforço ele esqueceu seu problema. Agora, minha opinião é que seu caso é explicável como pura fantasia da mente, uma ilusão de pesadelo, e cai na categoria de pensamento como satisfação de um desejo e alucinação mental. Eu expressei essa situação em verso.

Ah, quem saberá quem ela era,
E como andando pela noite ia!
Seria ela a lua que me lumiava,
Ou a luz do sol que se erguia?

Da mente uma mera conjectura
Por cogitação trazida?
Uma imagem que a alma desenha,
Pelo pensamento revelada?

Uma figura que meu espírito pintou
Para ter minha esperança realizada,
E que minha visão imaginou
Perceber na carne corporificada?

Ou não era esse o caso,
Mas apenas um acidente
A mim trazido pelo acaso
Com intenção malevolente?