domingo, 2 de março de 2008

Pra Marte


Comprei o disco recém-lançado do Maúrício Pereira, o Pra Marte. Que coisa linda, não tenho palavras. O Maurício é sempre muito delicado e muito divertido. "Trovoa" é bonita de doer, ele pega umas migalhas e enche de significado, nesse sentido me lembra muito "Um Dia Útil" do disco "Mergulhar na Surpresa". "Pranto Para Comover Jonathan", música sobre um poema da Adélia Prado é uma delícia, "Truques com Facas" é afiada e por aí vai. Assim que me recuperar do choque de beleza prometo um Música Estranha dele. Ops, acho que já estou devendo um da Róisin Murphy...

There Will Be Blood


Às vezes o universo envia augúrios e a gente ignora deliberadamente. Saí três vezes de casa determinado a assistir There Will Be Blood, o último filme do Paul Thomas Anderson, e nas três vezes acabei por fazer outra coisa. Hoje saí pela quarta vez, e quase não consegui assistir de novo, mas a perseverança sempre acaba por triunfar. Bem, não é verdade, às vezes a perseverança só leva a um beco sem saída. Mas estou divagando novamente, voltemos ao cinema. Não posso dizer que estou arrependido, o filme não é ruim, mas definitivamente estava abaixo da minha expectativa.



Para começo de conversa, eu tinha lido coisas como "o filme trata da indústria do petróleo" ou "o filme trata de uma família de magnatas do petróleo". Não é nada disso. O filme não é sobre o petróleo. O filme não é sobre uma família. O filme é sobre um homem horrível. Note-se que isso não é uma queixa, é possível fazer um grande filme sobre um homem horrível. Mas em minha opinião o personagem é demasiado escuro. Vou me explicar melhor. Para que um personagem monstruoso tenha densidade emocional é necessário ambigüidade moral. Temos que sentir que o sujeito não sai simplesmente espalhando canalhices apenas porque tem o mal no coração, mas que busca alguma coisa - sei lá, amor, dinheiro, poder, fama - e toma decisões erradas. É por isso que o herói hollywoodiano na sua forma mais pasteurizada é maçante, porque é bonzinho demais, perfeitinho demais, apropriado demais. Não é humano, não podemos nos identificar com ele em nenhuma instância. O mesmo que vale para o mocinho vale para o bandido, se o personagem for só branco ou só preto falta densidade, ou para manter a metáfora visual, perspectiva e profundidade. Para pintar um quadro humano convincente, seja ele ensolarado ou sombrio, é necessário tons de cinza.



Abro um parênteses. É possível trabalhar com um personagem que encarna uma faceta essencial do ser humano de forma absoluta e ser bem-sucedido. Mas aí é necessário operar num nível expressamente simbólico, mitológico, quase como numa parábola. Quando penso nesse tipo de filme me vêm à cabeça o Hero do Zhang Yimou, mas esse não é um bom exemplo para o ponto que quero ilustrar, pois todos os personagens desse filme possuem uma ambigüidade moral essencial. Para resumir podíamos citar Santo Agostinho, "não consigo fazer o bem que quero, mas consigo fazer o mal que não quero". Esse dilema está profundamente enraizado na experiência humana, e desde a tragédia clássica estamos à volta com ele. Fecha parênteses.


Enfim, a atuação do Daniel Day-Lewis é de primeira, mas o roteiro não ajuda. De resto o filme possui a câmera fabulosa do P.T. Anderson, e um áudio muito competente, embora a onipresença de música às vezes canse um pouco. Mas não se iludam, é um filme muito mais convencional do que qualquer coisa que ele fez antes. Acho que ele está tentando enriquecer a sua linguagem incorporando a universalidade do "cinemão" (ele teve uma crise criativa forte antes de iniciar esse filme). No fim das contas é um filme irregular, que não conseguiu me levar à "suspensão voluntária da descrença", que Coleridge considerava indispensável para o sucesso de uma narrativa. Em momento algum me esqueci que estava no cinema. Mas há cenas memoráveis, e a cena final do filme é uma obra-prima consumada, que me deixou todo arrepiado. Pena que temos que passar por duas horas e vinte quando quarenta minutos estavam mais do que bom para chegar lá.