sábado, 9 de agosto de 2008

Uma oração

Saí com a Pri ontem e como sempre nos divertimos horrores. Há um assunto recorrente ultimamente em nossas papos ébrios, que é a questão da religiosidade. Essa é uma coisa que eu passei a maior parte da vida desdenhando, até que a própria vida me despertou para o fato de que essa é uma coisa central numa existência humana plena.

Me explico. Não estou falando necessariamente de religião organizada, embora eu nada tenha contra elas. Pessoalmente não me sinto atraído por igrejas, seitas e similares. O Joseph Campbell escreveu uma vez que sempre que houve uma grande religião organizada, surgia em paralelo uma via mística em torno da mesma crença. A religião organizada tem o papel de estabelecer e padronizar a narrativa sagrada, a liturgia, o espaço de culto. É um papel de separação e discriminação do espaço sagrado do profano. A via mística tem o impulso de sacralizar a vida cotidiana, de propor uma imersão interna indefinidamente na dimensão sagrada da existência. É um papel de união e agregação. A diferença entre os dois caminhos pode ser vista na comparação entre um São Paulo de Tarso e um São Francisco de Assis. Mas estou digredindo novamente.

A importância para mim da religiosidade é dar sentido às coisas. A visão materialista consiste em olhar para o mundo como se ele fosse produto do acaso, resultado da batalha caótica entre os diferentes elementos que compõem o mundo. Era assim que eu via tudo. A visão espiritual consiste em se aproximar de qualquer coisa como sendo sagrada. Como sendo importante. Como tendo um lugar fundamental no mundo, sem excluir qualquer outra coisa.

Uma das experiências de iluminação pessoal que tive é a seguinte. Podem chamá-la de "Parábola do Banheiro Imundo", se quiserem. Um dia no meio de um trago em alguma espelunca de quinta categoria, me levantei para ir ao banheiro. Quando cheguei lá, era um horror. Provavelmente o banheiro mais sujo que eu já vi na vida. Então percebi que uma coisa tão unilateralmente imunda como aquela tinha um significado fora do ordinário. Aquele lugar era o arquétipo da sujeira, era a imundície encarnada no mundo com uma pureza quase imaculada. Então percebi que estava num templo da sujeira. Sim, porque o sujo, o podre, o imundo têm um lugar importante no mundo. É na podridão e na decomposição que surge o adubo da nova vida. É na meia-noite que o dia inicia. Então fechei os olhos e agradeci com todo meu ser ao deus Imundície dentro de seu templo. E essa foi uma revelação mística para mim, que mudou permanentemente a maneira como eu me relaciono com os lugares, para nem mencionar as pessoas e as coisas.

Eu a Pri ficamos conversando sobre isso 6h da manhã no Van Gogh. No outro dia quando acordei me lembrei disso e tive vontade de ouvir uma música que sempre me pareceu ter um tom de mantra, de oração, com sua cadência coral. Resolvi prestar atenção na letra e me dei conta de que realmente a música é uma oração na sua acepção mais pura. E é linda linda linda. Queria postar ela aqui, pois o mundo precisa muito dessas palavras. Chama-se Rain your love down e está no disco Conversation Peace dessa criatura negra, cega e santa que se chama Stevie Wonder.

Such a lovely world was made for you and me
wondrous life for us to taste, touch, smell, hear and see
but one glance from outside looking at our world state
clearly displays we don't appreciate it at all

Rain your love down, won't you rain down your love
let it drench us like the sun from above

Such ability inside you and me
made to do anything and be all we can be
but one bird's eye view at us does show, oh it shows
that against God's plan we've let it go, oh no

Rain your love down, won't you rain down your love
let it drench us like the sun from above
rain your love down, let it rain down today
so that it may wash all our sins away

You'd think the signs would make a difference
You'd think fire next time instead of rain
would cause us to make a change
the world has gone insane

Rain your love down, won't you rain down your love
let it drench us like the sun from above
rain your love down, let it rain down today
so that it may wash all our sins away


Rain your love down, let it pour on us
cleansing us from hunger, hate, war and greed
rain your love down, won't you let us start over again
so we can live up to your Master Plan

Rain your love down, oh won't you let it start
wash the wicked minds and the sick at heart
rain your love down, won't you let it rain
rid this world of drugs, disease, crime and pain

Clear our spirits, give our minds new software
with your lesson on honour, respect, trust and care
rain your love down I beg for human sake
for only you can get us out of this state

Rain your love down, rain down on all mankind
cause we are so out of order and so out of line

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

É Dose

Esqueci uma importante frase do "Doses de Sabedoria":

- "O homem que tudo quer, tudo deseja"

Pois é. O homem que bebe esqueece das coisas.

domingo, 3 de agosto de 2008

Em tempo.

A julgar pelas últimas duas semanas, se trago fosse esporte, eu estaria indo pras Olimpíadas.

Entre a Água e o Fogo



Tocar com o Sauren é fogo. O álcool destrói os neurônios dele e ele esquece as músicas que a gente ensaiou meses. Aí quando eu pego o violão pra mostrar para ele a harmonia da música, ele começa a reclamar já no primeiro acorde:

- Então Sauren, começa em dó maior com sétima maior...
- Isso não é um dó. É um sol.
- Como assim? Isso aqui é um dó!
- Então por quê o bordão da pestana está no sol?
- Para eu não ter que fazer uma meia-pestana, eu não toco o sol, porra!
- Aahhhhh. É bem coisa de baixista mesmo.

E ainda tenho que ouvir isso.

Mas a melhor da tarde foi:

- "E agora vamos fazer aquele som do marrom five... Stevie Makes me Wonder"

Pelo menos a Cami esqueceu aquela história da gralha. Espero que ela não leia isto.

Doses de Sabedoria

Lembram daquele livrinho que era onipresente nas cabeceiras de cama uns 15 anos atrás, o "Gotas de Sabedoria"? Era cheio de frases pseudo-inteligentes, para iluminação dos leitores. Ou para dar sono, o que explicaria o lugar onde era mais facilmente encontrado. Mas estou divagando. O fato é que muitas vezes pensei em escrever um equivalente, contendo as inumeráveis frases criadas em momentos de embriaguez por esse modesto escrivão. Deveria chamar-se, apropriadamente, "Doses de Sabedoria". Segue um preview:

- Aquele que pensa que sabe, esse não sabe. Aquele que sabe que não sabe, esse não sabe também.

- O pior cego é o que não consegue ver.

- O mesmo raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar.

- O homem mais sábio é o que possui a maior quantidade de sabedoria.

- Por mais que uma árvore cresça, ela jamais atingirá mais do que a metade do seu tamanho médio aproximado. Sobretudo no inverno. (essa eu aprendi com Flávio Ferme, meu guru).

Qualquer uma das frases acima pode ser enriquecida com a adição no final de um "E vice-versa."

Usem com sabedoria.

domingo, 2 de março de 2008

Pra Marte


Comprei o disco recém-lançado do Maúrício Pereira, o Pra Marte. Que coisa linda, não tenho palavras. O Maurício é sempre muito delicado e muito divertido. "Trovoa" é bonita de doer, ele pega umas migalhas e enche de significado, nesse sentido me lembra muito "Um Dia Útil" do disco "Mergulhar na Surpresa". "Pranto Para Comover Jonathan", música sobre um poema da Adélia Prado é uma delícia, "Truques com Facas" é afiada e por aí vai. Assim que me recuperar do choque de beleza prometo um Música Estranha dele. Ops, acho que já estou devendo um da Róisin Murphy...

There Will Be Blood


Às vezes o universo envia augúrios e a gente ignora deliberadamente. Saí três vezes de casa determinado a assistir There Will Be Blood, o último filme do Paul Thomas Anderson, e nas três vezes acabei por fazer outra coisa. Hoje saí pela quarta vez, e quase não consegui assistir de novo, mas a perseverança sempre acaba por triunfar. Bem, não é verdade, às vezes a perseverança só leva a um beco sem saída. Mas estou divagando novamente, voltemos ao cinema. Não posso dizer que estou arrependido, o filme não é ruim, mas definitivamente estava abaixo da minha expectativa.



Para começo de conversa, eu tinha lido coisas como "o filme trata da indústria do petróleo" ou "o filme trata de uma família de magnatas do petróleo". Não é nada disso. O filme não é sobre o petróleo. O filme não é sobre uma família. O filme é sobre um homem horrível. Note-se que isso não é uma queixa, é possível fazer um grande filme sobre um homem horrível. Mas em minha opinião o personagem é demasiado escuro. Vou me explicar melhor. Para que um personagem monstruoso tenha densidade emocional é necessário ambigüidade moral. Temos que sentir que o sujeito não sai simplesmente espalhando canalhices apenas porque tem o mal no coração, mas que busca alguma coisa - sei lá, amor, dinheiro, poder, fama - e toma decisões erradas. É por isso que o herói hollywoodiano na sua forma mais pasteurizada é maçante, porque é bonzinho demais, perfeitinho demais, apropriado demais. Não é humano, não podemos nos identificar com ele em nenhuma instância. O mesmo que vale para o mocinho vale para o bandido, se o personagem for só branco ou só preto falta densidade, ou para manter a metáfora visual, perspectiva e profundidade. Para pintar um quadro humano convincente, seja ele ensolarado ou sombrio, é necessário tons de cinza.



Abro um parênteses. É possível trabalhar com um personagem que encarna uma faceta essencial do ser humano de forma absoluta e ser bem-sucedido. Mas aí é necessário operar num nível expressamente simbólico, mitológico, quase como numa parábola. Quando penso nesse tipo de filme me vêm à cabeça o Hero do Zhang Yimou, mas esse não é um bom exemplo para o ponto que quero ilustrar, pois todos os personagens desse filme possuem uma ambigüidade moral essencial. Para resumir podíamos citar Santo Agostinho, "não consigo fazer o bem que quero, mas consigo fazer o mal que não quero". Esse dilema está profundamente enraizado na experiência humana, e desde a tragédia clássica estamos à volta com ele. Fecha parênteses.


Enfim, a atuação do Daniel Day-Lewis é de primeira, mas o roteiro não ajuda. De resto o filme possui a câmera fabulosa do P.T. Anderson, e um áudio muito competente, embora a onipresença de música às vezes canse um pouco. Mas não se iludam, é um filme muito mais convencional do que qualquer coisa que ele fez antes. Acho que ele está tentando enriquecer a sua linguagem incorporando a universalidade do "cinemão" (ele teve uma crise criativa forte antes de iniciar esse filme). No fim das contas é um filme irregular, que não conseguiu me levar à "suspensão voluntária da descrença", que Coleridge considerava indispensável para o sucesso de uma narrativa. Em momento algum me esqueci que estava no cinema. Mas há cenas memoráveis, e a cena final do filme é uma obra-prima consumada, que me deixou todo arrepiado. Pena que temos que passar por duas horas e vinte quando quarenta minutos estavam mais do que bom para chegar lá.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Dúvida

Is there anybody out there? Alguém dê ao menos uma tossida por favor...

sábado, 19 de janeiro de 2008

O Colar da Pomba: II - Sobre Apaixonar-se Durante o Sono

Desculpem o hiato de quase um mês. Vocês sabem como é. Férias, preguiça, etc.

Mas continuemos com a tradução d'O Colar da Pomba:

II - SOBRE APAIXONAR-SE DURANTE O SONO

CADA caso de amor precisa necessariamente de uma causa que lhe origine. Começarei com a mais improvável das causas do amor, de forma que o discurso possa prosseguir na ordem devida, iniciando como sempre através do exemplo mais simples e fácil. O amor é de fato causado por coisas tão estranhas, que eu não as mencionaria se não as tivesse observado eu mesmo.

Aqui está uma situação da minha própria experiência. Um dia visitei nosso amigo Abu’l-Sari ‘Ammar Ibn Zyiad, o liberto de al-Mu’aiyad e encontrei-o afundado em pensamentos e muito preocupado. Lhe perguntei o que havia de errado; por algum tempo ele recusou-se a explicar, mas então disse “Uma coisa extraordinária me aconteceu, de um tipo desconhecido para mim.” “O que foi?” perguntei. “Noite passada”, ele respondeu, “vi em sonho uma linda dama, e ao acordar descobri ter perdido completamente meu coração para ela, que estava loucamente apaixonado por ela. Agora estou na mais difícil das situações com essa paixão que nutri por ela.” Ele continuou amuado e aflito por mais de um mês; nada lhe alegrava, tão profunda era sua emoção. Por fim repreendi-o, dizendo “É um erro imenso ocupar sua alma com algo irreal, e apegar sua fantasia a um ser inexistente. Você sabe quem é ela?” “Não, em nome de Alá!” ele respondeu. “De fato”, prossegui, “tens muito pouco juízo, e teu julgamento deve estar comprometido se estás de fato apaixonado por uma pessoa que nunca viste, ainda mais por alguém que nunca foi criado e simplesmente não existe no mundo. Se tivesses apaixonado-se por uma dessas figuras pintadas nas paredes dos banhos públicos eu acharia mais fácil desculpar-te.” Assim continuei, até que enfim através de um grande esforço ele esqueceu seu problema. Agora, minha opinião é que seu caso é explicável como pura fantasia da mente, uma ilusão de pesadelo, e cai na categoria de pensamento como satisfação de um desejo e alucinação mental. Eu expressei essa situação em verso.

Ah, quem saberá quem ela era,
E como andando pela noite ia!
Seria ela a lua que me lumiava,
Ou a luz do sol que se erguia?

Da mente uma mera conjectura
Por cogitação trazida?
Uma imagem que a alma desenha,
Pelo pensamento revelada?

Uma figura que meu espírito pintou
Para ter minha esperança realizada,
E que minha visão imaginou
Perceber na carne corporificada?

Ou não era esse o caso,
Mas apenas um acidente
A mim trazido pelo acaso
Com intenção malevolente?