terça-feira, 13 de novembro de 2007

Biblioteca Pessoal: Hermann Melville


Obra: Moby Dick


Moby Dick é uma novela abrumadoramente extensa, do tipo que não costumo gostar de ler. À medida que o tempo passa tenho menos paciência para rípios e me agradam gêneros mais econômicos, como o conto, o ensaio ou a poesia. Ademais, o livro está redigido em um inglês arcaico e utiliza muitos termos náuticos de época, tornando a leitura desafiadora. A única concessão existente para o conforto do leitor são os capítulos, profusos e curtos, que facilitam a retomada da leitura após uma interrupção. Nada mais chato que capítulos intermináveis, que favorecem a insônia.

As declarações acima, demasiadamente voltadas para a forma e o volume do livro, podem parecer características de um leitor preguiçoso. Na verdade pretendo justamente argumentar que esse livro em especial possui um grande valor por ser longo – seu objetivo se atinge através de um certo estilo aliado a uma considerável extensão.

Borges escreveu que Moby Dick era um livro sobre o mal, ou sobre a maneira errada de combater o mal. A mim parece que é um livro que trata eminentemente da obsessão.

A trama, já universalmente conhecida, é prosaica. O protagonista é um rapaz que deseja conhecer o mundo e tornar-se um homem. Alista-se no Pequod, um navio baleeiro, junto com seu amigo, um canibal maori. O capitão do navio, Ahab, perdeu sua perna para Moby Dick, a feroz baleia branca. Durante anos alucinatórios ele a persegue pelos mares do mundo, sem nunca tocar a terra. O capitão está insano e sua loucura contagia os marinheiros, que perseguem o leviatã com profunda virulência. Navegamos durante horas e horas por essa longa narrativa feita de minúcias sem que nada aconteça, até que pressentimos, assim como o marujo pressente a semente da tempestade na mais bochornosa das calmarias, o horrível e vertiginoso confronto final, que conclui a estranha telemaquia do narrador.

Essa trama simples, que pode ser resumida em um parágrafo, não possui maior eficácia se redigida de modo convencional. Mas Melville não obrou assim. Freqüentemente, se um autor quer falar de um tema ele fala desse tema. Melville para falar sobre a obsessão não falou sobre a obsessão, e sim um de seus possíveis objetos: a baleia. Temos uma sensação de estranheza já ao abrir o livro: ao invés de uma epígrafe, temos dezenas de páginas de epígrafes, todas elas frases sobre baleias retiradas das mais diversas fontes: manuais náuticos, zoografias gregas, os evangelhos. Após a narrativa breve do engajamento de Ishmel no Pequod e das reais intenções de Ahab, Melville nos mergulha num oceano de baleias: conhecemos as diversas espécies, sua taxonomia, a literatura disponível sobre o tema, seus hábitos de deslocamento, alimentação, acasalamento, seus órgãos internos, seu valor comercial, as formas de sua captura, de seu recolhimento, sobre como a baleia é desmembrada e o destino de suas diferentes partes, sobre a organização de um baleeiro, sua hierarquia e distribuição física, sobre os diferentes arpões e sua forma de manejo, sobre a estrutura dos barcos de caça e seus equipamentos, sobre os olhos da baleia. Quando percebemos estamos tão obcecados e monomaníacos como Ahab. Nessa altura, depois de umas quinhentas páginas, já estamos prontos para a grande baleia branca. Eis como um livro desprovido de trama pode ser tão absorvente, e os rípios se tornam não um adorno, mas a própria ossatura da narrativa.

Existe uma imagem em um dado momento da narrativa que para mim é tão forte que até hoje me arrepia a nuca quando a imagino. No capítulo 96, “The Try-Works”, Melville descreve o aparato gigantesco utilizado para ferver as partes de baleia das quais é retirado o óleo combustível. O próprio óleo da baleia é utilizado para alimentar o fogo dessa fervura, de maneira que o corpo da baleia é utilizado para consumir a própria baleia. A passagem à qual me refiro ocorre numa noite, após a captura bem-sucedida de uma baleia, enquanto os marinheiros – maoris, chineses, índios, negros, irlandeses - enlouquecidos e embriagados assistem ao desmembramento e fervura do animal, enquanto as línguas de fogo avermelham por quilômetros solitários o mar escuro:

“Suas feições morenas, agora totalmente imundas de fumaça e suor, suas barbas rudes e a contrastante alvura barbárica de seus dentes, todos estranhamente revelados pelas flamas dos fornos. Enquanto narravam um ao outro suas aventuras profanas, seus contos de terror relatados com palavras vulgares; enquanto sua gargalhada malcriada emanava de seu semblante, como chamas da fornalha; enquanto, de um lado para o outro, em sua frente, os arponeiros gesticulavam selvagemente com seus imensos garfos pontudos, e suas conchas; enquanto o vento uivava, e o mar se contorcia, e o navio gemia e mergulhava, e ainda assim espalhava firmemente sua vermelhidão infernal além e além na negrura do mar e da noite, e jocosamente mordia a mandíbula branca em sua boca, e sinistramente cuspia em seus flancos; e então o agitado Pequod, lotado de selvagens, e coberto pelo fogo, e queimando um cadáver, e encharcado pelo negrume da escuridão, parecia a contraparte material da alma monomaníaca do seu comandante.”



Moby Dick foi editado pela primeira vez em 1851 nos Estados Unidos, tendo se tornado um dos maiores clássicos da literatura em língua inglesa. Dentre a rica obra de Hermann Melville recomendo também a leitura de “Bartleby, o Escriturário”, cujo tema prefigura de certa maneira a obra de Kafka.

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