terça-feira, 13 de novembro de 2007

Biblioteca Pessoal: Thomas S. Kuhn


Obra: A Estrutura das Revoluções Científicas

Este livro do Dr. Kuhn foi uma das poucas leituras que descobri na faculdade e que me acompanharam depois. Tive de comprá-lo várias vezes, pois aparentemente é um livro muito cobiçado pelos leitores de livros emprestados. Trata-se um livro de teoria da história da ciência, e devo a esse livro o fascínio que possuo pelo tema. Seu principal objetivo é demolir a idéia - bastante arraigada até hoje - de que a construção do conhecimento científico é um processo contínuo e cumulativo.

Segundo Thomas Kuhn, a pesquisa científica em um determinado campo do conhecimento intercala dois tipos de períodos: períodos normais, no quais a ciência é orientada por um determinado paradigma, e períodos revolucionários, nos quais novos paradigmas são forjados solapando os anteriores. A palavra paradigma, que deve muito de sua popularidade a esse simpático livrinho, descreve um sistema conceitual totalizante, que elenca os problemas, definições, explicações, métodos e ferramentas que são aceitáveis para a pesquisa científica em um determinado campo. Um paradigma é - como os "sistemas de verdade" de Paul Veyne - uma camisa de força que constrange a visão que se tem de uma determinada porção desse sistema extremamente complexo que chamamos de universo (embora os otimistas também o chamem "cosmos"). Durante os períodos de pesquisa normal, a prática científica visa essencialmente provar e refinar o paradigma; e nesse processo não há nenhum problema em se ignorar solenemente os desvios que não podem ser reduzidos ao aparato paradigmático. Entretanto, esses desvios - que Kuhn chama de "anomalias" - são persistentes e proliferam, contra a vontade dos pesquisadores, até gerarem uma situação de crise no paradigma. É nesse momento que começa a revolução científica, que com o tempo costuma desaguar em um novo paradigma. Um novo paradigma é uma nova Weltaschaaung (uma nova visão de mundo, para usar um termo muito em voga durante minha passagem pela academia e que não é, para nossa graça, usado no livro). O novo paradigma não complementa o anterior, ele o aleija, na melhor das hipóteses, e o mata, na maioria das vezes.

Um exemplo disso é a astronomia ptolomaica, geocêntrica, que foi utilizada por centenas de anos para predizer com sucesso os movimentos planetários. Entretanto, uma série de anomalias vinculadas à predição dos equinócios levaram a tantas adaptações e remendos no modelo original que quando Copérnico propôs o modelo heliocêntrico o legado de Ptolomeu já se havia transformado, nas palavras da época, em "um monstro". Por que razão o modelo heliocêntrico não foi aceito até Copérnico? Porque não havia sido imaginado, talvez? Não. Aristarco havia levantado essa hipótese ainda no século III a.C., dezoito séculos antes. Entretanto, só no século XV haviam sido identificadas suficientes anomalias para justificar uma crise no paradigma. A ciência é ciência porque, entre outras coisas, é totalizante e conservadora. A partir daqui podemos tocar em um ponto fundamental, a noção (equivocada) de que a ciência é sempre um processo de acumulação de conhecimento. Todos os ajustes realizados nos séculos precedentes para tornar o modelo geocêntrico mais preciso são utilizados até hoje? Não, naturalmente. A mudança de paradigma não realizou uma simples adição de novos conhecimentos à ciência; ela mudou de forma tão radical o relacionamento entre os conceitos manejados da astronomia de então que a maioria dos conhecimentos acumulados anteriormente se tornou pura e simplesmente inútil. Isso tornou seu estudo sem sentido? Não, pois sem esse estudo não teria existido massa crítica para o novo paradigma. A pesquisa tem sentido mesmo quando está errada, ela apenas não é contínua nem cumulativa. Claro que se pensarmos um pouco sobre as conseqüências disso chegaremos brevemente à conclusão de que a ciência sempre está errada...
Essa concepção do avanço da ciência me faz relembrar uma das leis da dialética de Hegel, a lei da transformação da quantidade em qualidade. Hegel dizia que a evolução do pensamento ocorre de forma cumulativa e, entretanto, as grandes conclusões ocorrem de modo súbito. Isso é possível porque é necessária acumulação de idéias - quantidade - para possibilitar o surgimento de massa crítica para que ocorra um grande salto conclusivo - qualidade. Nada de novo há sob o céu, disse o Eclesiastes.

Dito isso, vamos ao que realmente interessa. Possivelmente as mais gratas lembranças que tenho desse livro são os exemplos fornecidos, às vezes quase anedóticos, freqüentemente fantásticos. A imaginação humana é tão vasta que podemos encontrar até mesmo num árido livro de teoria as fantasias mais selvagens: o baralho que era um instrumento para perder os homens num labirinto mental, feito de classificações não-ortogonais; a narrativa de como Lavoisier inventou o oxigênio; o conto de Afonso X, que deu conselhos a Deus sobre como criar o universo; nessas mil e uma noites da ciência encontram-se essas dentre outras histórias que mereceriam figurar numa biblioteca de literatura fantástica, ao lado do Gilgamesh, do Silmarillion e do Pentateuco.
Thomas Samuel Kuhn formou-se físico teórico. Uma carreira tortuosa levou-o ao estudo da história da ciência, campo que seria profundamente transformado por esse agradável ensaio, publicado em 1962 e enriquecido com um posfácio em 1969.

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