terça-feira, 13 de novembro de 2007

Nota à trilogia "Três Cores" de Krzysztof Kieslowski

Foucault escreveu, em Marx, Freud, Nietszche, que a atividade crítica contemporânea se caracterizaria por uma forma específica de interpretação, que consistiria em des-cifrar os textos, procurando-lhes um sentido que se encontra oculto. Essa idéia também foi apresentada por Susan Sontag em um ensaio (Contra a Interpretação) que se dedica a combatê-la. Segundo esses autores, interpretar seria encontrar sob o conteúdo manifesto de um texto o seu conteúdo latente, ou seja, diante de X, que é uma aparência, devemos procurar Y, que é seu verdadeiro sentido, sentido que está escondido, enterrado, sob o texto.

Sem julgar o valor dessa forma de interpretação, parece-me inegável que atualmente essa é uma forma bastante comum de relacionar-se com obras de arte. Parece-me igualmente inegável que certas obras são construídas a partir da ciência prévia de que serão assim interpretadas, e feitas para reagir de formas específicas a essa sorte de interpretação. Esta nota tenciona sugerir que a trilogia “Três Cores”, de Krzysztof Kieslowski, pode encontrar-se entre estas.

Compõem a trilogia os filmes A Liberdade é Azul (Bleu, 1992), A Igualdade é Branca (Blanc, 1993) e A Fraternidade é Vermelha (Rouge, 1993) (*). O argumento consiste em três estórias episódicas que interpermeiam-se. Os filmes foram construídos de maneira a comportarem diversos cruzamentos entre si, sendo uns de natureza seqüencial (para entendermos o acontecimento X do filme A temos de ter conhecimento do acontecimento Y do filme B), e outros de natureza analógica (o mesmo acontecimento ocorre de maneira ligeiramente diferente em mais de um filme).

Tenho conhecimento de três ensaios que buscam encontrar um nexo explicativo para os filmes: Krzysztof Kieslowski's Three Colours Trilogy, de Gerard Sampaio, Kieslowski’s Three Colours Trilogy, de Antigone Sdrolia e St. Paul, Kieslowski, and the Christian Framework of “Trois Couleurs”, de Carla Barringer Rabinowitz. Nesses textos as delicadas coincidências de Kieslowski são consideradas veículo de conteúdos tão distintos e vastos quanto os valores da Revolução Francesa, a dialética Hegeliana e a Santíssima Trindade. O curioso é que cada ensaio reivindica ter encontrado o sentido “verdadeiro” por trás dos filmes, ou seja, o sentido originalmente pretendido pelo diretor ao realizá-lo. Esses ensaios podem ser encontrados em http://www.petey.com/kk. Deixo ao leitor a diversão de destrinchar esses textos que enxergam a obra como alegoria de uma verdadeira selva de significados distintos.

Qual é, afinal, a chave para a leitura para os jogos de relações e referências da trilogia de Kieslowski? Podemos aceitar a hipótese de haja mais de uma. Existem figuras de linguagem que designam o uso da ambigüidade com fins estéticos (a ironia e a antanáclase, por exemplo), e a polissemia é uma operação artística conhecida. Podemos também lembrar que há uma infindável discussão que tenta delimitar os diferentes graus de influência do autor e do leitor na construção de uma obra de arte.

Mesmo ciente dos argumentos em contrário, cederei à tentação interpretativa de agregar mais uma nota à obra de arte em si. Minha hipótese é que a trilogia foi concebida de maneira a apenas sugerir um sentido oculto, sem que este necessariamente exista. Invoco como argumento a trama do filme A Fraternidade é Vermelha, que não por acaso é o último da série. Este filme mostra a perfeita analogia das vidas de dois homens com uma diferença de idade de vinte e cinco anos, o juiz Joseph Kern e o aspirante a juiz Auguste. Os acontecimentos da vida do primeiro tornam a ocorrer, de forma angustiantemente semelhante, na vida do segundo. O filme passa a maior parte do tempo preparando-nos para a resolução desta uma trama sobrenatural. Entretanto, nenhuma solução é oferecida. Julgo que o ápice do filme é quando Valentine, a protagonista, pergunta ao juiz Kern “De que maneira podemos ajudarmo-nos uns aos outros?” e ele responde “Não podemos. Nós só podemos ser”. O juiz Kern, um homem de tal forma obcecado pelo íntimo e pelo oculto que grava sistematicamente as conversas telefônicas de seus vizinhos, sabe apenas que é impossível chegar às causas e significados últimos das ações. Não me parece gratuito que Kieslowski dê a esse personagem o nome de Joseph Kern. A palavra alemã Kern equivale à inglesa core: núcleo, centro, caroço. Joseph K. é o nome do protagonista de O Processo, de Franz Kafka, autor que tinha na gratuidade e na carência de sentido os principais temas de sua literatura.

Supondo que minha hipótese esteja correta, e que a trilogia “Três Cores” apenas finja ter um sentido oculto, seria um maneira muito sofisticada de utilizar uma operação estética (cifrar um sentido oculto sob o texto aparente) de forma a combatê-la (reiterando que não há sentidos ocultos ou que não se encontram tão facilmente acessíveis). Se isso for verdade, não será necessariamente original: é precisamente a trama de The Figure in the Carpet, conto de Henry James. Me atrevo a supor que Kieslowski foi além de uma vindicação estética, chegando a uma de ordem metafísica. Kieslowski se insere num confronto antigo entre aqueles que julgam a existência insuportável sem um sentido teleológico que a justifique e aqueles que prescindem deste sentido para viver. O Hugh Vereker de Henry James escreveu um livro que apenas fingia ter sentido. Os personagens de Kieslowski vivem uma vida que apenas parece ter sentido. Jorge Luis Borges escreveu certa vez que não julgava possível que o mundo tivesse um sentido, que dirá dois ou três. Desconheço se Kieslowski era leitor de Borges, mas sei que A Dupla Vida de Véronique (La Doble Vie de Véronique, 1991) é o filme mais “borgesiano” que conheço.

(*) perceba-se que a lamentável tradução dos títulos para o português já incita à alegorização.

Um comentário:

Cacilda Becker disse...

Eu tive a oportunidade de descobrir Kieslowski com 'Não Amarás', 'Não Matarás' e 'A Igualdade é Branca', e há tanta crueldade, cinismo e metafísica neles que é impossível não ser tentado a esmiuçar algum sentido latente (a Teoria da Conspiração é a febre de nosso tempo, multiplica-se feito Gremlins). É um texto pertinente e muito bem elaborado.

A tempo: não julgava ser tua aquela tradução de Ulrica. É absolutamente barroca! Um texto com um viés esteta admirável, de que gostei muito.